sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Crenças e crendices

Ao longo da sua História e da sua evolução, a Humanidade caminhou lado a lado, passo a passo, com a mitologia; a religião; o sagrado e o profano. Mesmo nos períodos em que o primado da razão, devidamente alicerçado no humanismo e no racionalismo científico vigorou, o Homem nunca deixou de procurar respostas e conforto para os problemas existenciais, nas crenças; nos mitos e em última instância nas crendices e bruxarias .

(… )“ A mensagem religiosa geralmente exige determinado comportamento perante Deus, o sagrado e os homens, e é, muitas vezes, formulada de forma compatível com conceitos racionais e em doutrinas sistematizadas. O mito abrange maior amplitude de mensagens, desde atitudes antropológicas muito imprecisas, até conteúdos religiosos, pré-científicos, tribais, folclóricos ou simplesmente anedóticos, que são aceites e formulados de modo menos consciente e mais espontâneo, sem considerações críticas.”

Quando a Ciência parece falhar, o último refúgio e o derradeiro reduto, foram e ainda são, as crenças divinas, associadas aos mitos e às práticas presumivelmente paranormais .
O conhecimento cientifico, é uma conquista do próprio Homem, mas parece dar passos tímidos e hesitantes de criança, quando o confrontamos com a magnitude do Universo . As religiões ou as crenças paranormais, por oposição, dão aparentemente passos de gigante: A Ciência consegue, por exemplo, explicar a ideia de infinito, através das regras inabaláveis e precisas das leis matemáticas, mas parece não conseguir saciar as perguntas imanentes do senso comum ou do conhecimento empírico :

- O que é que se pode encontrar para além do infinito ?
- Se há estados de existência, relativamente aos seres vivos; à matéria ou ao próprio Universo, o que havia antes do real ? O vazio?
- Há estados de existência imaterial ?


A religião e as crenças, a esta associadas, parecem dar um resposta mais abrangente e inquestionável a todas as questões existenciais, tendo sempre por base o empirismo e o sagrado : Se acreditarmos no divino enquanto Entidade omnipresente e omnipotente, que tudo criou e que tudo domina, as grandes dúvidas parecem dissipar-se e achar-se descabidas . Esta visão não deixa, no entanto, de parecer simplista e redutora para aqueles que defendem o racionalismo ou o agnosticismo ( doutrina que defende a impossibilidade de se encontrar o conhecimento absoluto, dos problemas metafísicos ) .


Esta reflexão, tem o propósito de fazer uma certa luz, sobre os fenómenos subsidiários das crenças populares ; crendices e bruxarias, que ocorrem mais frequentemente, onde o conhecimento baseado na experiência do dia a dia e do medo do desconhecido , se impõem ao conhecimento cientifico .

A importância atribuída aos fenómenos pseudo - paranormais, atinge por vezes dimensões caricaturais, e não raras vezes preocupantes, como procurarei atestar no relato que passo a descrever :

Na vertente norte da serra de Marvão , há um sitio com o nome de Aldeia . Da ideia que fazemos de aldeia, este lugar só tem o nome, uma vez que as casas contam-se pelos dedos das mãos e encontram-se disseminadas ( sem a configuração de ruas ou praças ) .

Viviam aqui, duas famílias de lavradores, que tinham duas pequenas explorações agrícolas . Sendo vizinhos, viviam o dia a dia, num clima de sã e solidária convivência neste local recôndito. Este regime de paz social, haveria de ser interrompido abruptamente, quando a matriarca de um das famílias adoeceu . Sendo uma mulher de uma robustez física impressionante, fazia inveja a qualquer homem na labuta árdua e diária que travava com as actividades da lavoura ; do trato dos animais e das restantes tarefas domésticas. A sua aparência , irradiava uma saúde de ferro . faces rosadas ; corpo roliço e anafado, deixando antever que a sua “dieta”, contemplava o uso e abuso de bons nacos de presunto e enchidos do fumeiro da sua própria produção .


Certo dia, começou a sentir umas tonturas ; breves desmaios ocasionais, aos quais se seguiram outros mais frequentes . Impunha-se a marcação de uma consulta, no médico de família de Santo António das Areias .
O médico foi peremptório, perante os sintomas e as análises, era necessário implementar uma dieta à base de vegetais ; fruta e afins, com uma redução drástica no sal; açúcar , carnes gordas e vermelhas. Foi-lhe também administrada medicação adequada .

Numa primeira fase, as prescrições médicas foram seguidas, apesar de alguma relutância por parte da paciente . Como as melhoras não apareceram logo de seguida , a dieta foi progressivamente sendo posta de parte .

Atendendo que os sintomas se agravaram, a ponto de afectar o trabalho diário, e perante o fracasso das “mesinhas” do médico, era urgente procurar outras soluções que apresentassem resultados mais imediatistas .

A morte súbita de um animal na quinta (um porco ou uma vaca, não sei precisar), em circunstâncias estranhas, veio reforçar a ideia que as forças do oculto, andavam por aquelas paragens .
Era imperioso agendar um encontro com uma afamada “soldadora “ , que apoiava o seu desempenho em fortes convicções religiosas .

A consulta junto da vidente, teve o seu quê de inquérito policial, com práticas de interrogatório insinuante, tendentes a uma maior eficácia na adivinhação da maleita :
- Então a senhora tem esses sintomas ? ... Você não tem por acaso um vizinho muito próximo?
- Tenho sim minha senhora !
- Nunca notou uma certa inveja ,… da parte dele ?
- Agora que fala nisso…
- Olhe: Eu vejo aqui um caso típico de mau olhado, provocado pela inveja e cobiça !

O diagnóstico estava concretizado, assim desta forma, nua, crua e impiedosa . Os dotes de adivinhação da soldadora, ficaram reforçados, com o relato contado e amplificado por parte da paciente, junto de diversas pessoas, nos locais públicos que frequentava . Era indispensável cruzar os dedos em forma de cruz, sempre que se verificasse uma confrontação directa, não desejada, com a vizinhança .

O êxito destes curandeiros, bruxas, endireitas e soldadores, resulta desta publicidade de boca em boca, reforçado pelo facto das pessoas admitirem que recorreram a estas práticas quando as coisas aparentemente correram bem . Quando amiúde acontece o oposto, ninguém tem coragem de admitir publicamente que foi à bruxa .

A mulher lá foi para casa, com a prescrição da vidente bem definida : Rezas a horas certas; benzeduras contra o mau olhado e outra mesinhas.
Algum tempo depois, deu entrada nas urgências do hospital de Portalegre, com a tensão arterial a atingir os níveis máximos, permitidos pela natureza humana , para a continuidade da sua própria vida . Foi internada, examinada ; medicada e obrigada a regressar à dieta .


O marido que ficara entregue a si próprio, com todas as tarefas a seu cargo, irrompeu um dia pela taberna da aldeia e furioso, pediu licença para utilizar o telefone público, sem deixar de lançar antes, um desabafo bem audível que lhe saiu das entranhas :
- Raisparta a mulher, que não sai do hospital ! Com a nossa vida, temos lá tempo para estar doentes, no “choco “.

Estava assinado e declarado o estado de guerra, neste lugar isolado . A concórdia deu lugar ao ódio visceral entre as duas famílias . Aqueles que se consideravam ofendidos e presumivelmente atingidos pelos actos maléficos dos vizinhos, possuíam uma pequena propriedade que estes últimos precisavam de atravessar, para chegar aos seus próprios domínios .
As hostilidades foram iniciadas com a colocação de uma placa de madeira, afixada no muro de pedra seca da propriedade, por parte do marido da vitima do “ mau olhado”, na qual figuravam uns caracteres rudemente desenhados, mas com uma mensagem clara :

É PROIBIDA A PAÇAGEM (com cê de cedilha) , ÀS BESTAS E A TODA A GENTE !
Não era muito claro e cristalino, se a besta era o vizinho ou o macho da carroça deste , que constituía o seu único meio de transporte, para as deslocações necessárias às feiras e aos comércios das aldeias mais próximas.
A partir daqui, as famílias tornaram-se inimigas para a vida e nada voltou a ser como dantes .

A importância que as pessoas, por vezes conferem aos dotes de adivinhação e às presumíveis capacidades curativas destes videntes ; curandeiros e soldadores que se escudam quase sempre no fenómeno religioso, para realçar as suas virtudes, podem atingir proporções e consequências extremamente nefastas, para aqueles que se deixam enredar nestas teias urdidas por gente sem escrúpulos .
Nestas coisas não há no entanto verdades absolutas . Também podemos encontrar no universo da sabedoria e do imaginário popular, no que às crenças e crendices concerne, material interessantíssimo e digno de estudos etnográficos e etnológicos .

Na obra Neo-realista de Fernando Namora : “Retalhos da vida de um médico “ no Capítulo intitulado – “História de um parto “, há um relato assaz pungente, talvez emergente das vivências do autor, enquanto médico, que transcrevo aqui parcialmente :
(…) “ Os camponeses vinham ao consultório fechados em meias palavras, avaliando dos meus dotes de mágico, e nas suas faces obstinadas havia apenas desconfiança e desafio :Algumas vezes, a morte estava ali entre mim e eles, troçando da minha humildade apavorada, e nem assim me davam um estímulo : duros, invioláveis, lá lhes parecia que um bom médico não precisa de arrimos “ (… ) .
P. S. - os episódios aqui referenciados, emergem do imaginário popular e da transmissão de boca em boca . Como diz o adágio popular " quem conta um conto aumenta-lhe sempre um ponto", pelo que, os relatos em causa poderão ser ficcionados .
Não visam atingir ninguém em concreto, nem ferir susceptibilidades . O presente post, tem apenas como objectivo, fazer uma reflexão sobre casos similares, que não são tão raros, como se possa imaginar .

Um comentário:

Bonito disse...

Excelente assunto para uma Sexta-Feira, 13!

Este relato, extraordinariamente bem apresentado pelo Hermínio, é um exemplo daquilo que acontece por aí, com mais frequência do que a Era do conhecimento em que vivemos faria prever.

De facto, o obscurantismo da crendice ainda afecta muita gente…


Grande Abraço
Bonito