quarta-feira, 22 de outubro de 2008

" Conta-me como foi "

( carregue no botão da tv que a imagem aumenta )

Fui um espectador atento da excelente série de ficção , intitulada : “ Conta-me como foi “, que passava em horário nobre, no canal 1 da RTP . Alguns dos episódios emitidos, reavivaram as minhas memórias de infância e juventude ( sobretudo no período que compreendeu a década de setenta ) do século XX .

A televisão foi um luxo ao qual só pude aceder , por volta de 73, quando já tinha dez anos . A energia eléctrica, só chegaria à minha aldeia em 1981, pelo que, os primeiros programas veiculados pela “caixinha mágica” a que assisti, foram vistos num minúsculo televisor, com vidro grosso e convexo, cujo aspecto, antecipava o design dos primeiros microondas da era moderna .

A fonte de alimentação era uma bateria de automóvel, que era necessário recarregar com a periodicidade de uma semana .

Recordo-me de assistir á primeira telenovela brasileira : “ Gabriela cravo e canela “, baseada no romance de Jorge amado . Ao princípio não percebia patavina do que diziam as personagens, que de episódio em episódio, evoluíam no pequeno ecrã, pois aquele português com açúcar, era quase indecifrável .

Com o tempo, eu e miúdos da minha idade, lá nos fomos habituando, àquele estranho sotaque, ao mesmo tempo que íamos interiorizando expressões estranhas como : “oposição ao regime “ ( dos coronéis ) ; “opressão do povo “ ; “ luta de classes “, o tipo de retórica que seria amplamente difundida no pós 25 de abril de 74 .


O meu imaginário televisivo ficou mais consolidado com as emissões, desta vez obrigatórias, dos programas lectivos do ciclo preparatório - Telescola ( correspondente ao actual 2º ciclo ) , cujo edifício se encontrava enclausurado entre uma espécie de colina com sobreiros e a Casa do Povo de Santo António da Areias .

Guardo na minha memória visual, as aulas televisivas do professor de Francês, um senhor muito sério de cabelo branco, que dizia frases curtas ( arrancadas ao contexto das lições do manual escolar ) do tipo :

- Le chien de Madame cardin S’appelle Patapuf !
- Répétez vous maintenant !

Após esta voz de comando, o professor de carne e osso que estava na sala de aula, relativamente ao qual guardo óptimas recordações, mandava-nos repetir à vez ou em uníssono :
- Le chien de Madame cardin S’appelle Patapuf !

Ficávamos assim a conhecer aquele cão francês da Madame Cardin, com aspecto de ovelha tosquiada, que se chamava Patapuf .


As minhas primeiras experiências cinéfilas, também ocorreram por esta altura, em Santo António das Areias, na Sociedade recreativa .

Creio que um dos primeiros filmes a que assisti nesse espaço foi, “ O planeta dos macacos “, que na altura vinha com o nome de , “ O homem que veio do futuro “, cujo protagonista principal era desempenhado pelo actor Charton Heston, o mesmo que fez de Moisés e que foi brilhantemente satirizado num dos filmes De Michael Moore, pelo facto do primeiro ter sido um verdadeiro activista e defensor do uso indiscriminado de armas, nos States .

“ O homem que veio do futuro “, dava conta das peripécias de um grupo de astronautas que depois de passar algum tempo no espaço, voltava à terra, que tendo sido alvo de um cataclismo tecnológico e ambiental, era dominado pelos grandes símios .

Este filme daria origem a uma saga, a fazer lembrar as actuais trilogias, como ,” O senhor dos anéis ou “ Matrix “.


Apesar do som roufenho que saía das colunas obsoletas colocadas em cima do palco e que por vezes não coincidia com os movimentos labiais dos actores, as imagens no grande ecrã, eram belas e avassaladoras, quando comparadas com as dos minúsculos televisores a preto e branco .

A noite cinéfila era anunciada, nas tardes de Sábado, através dos altifalantes colocados no tejadilho de um automóvel, que percorria as aldeias do Concelho . o discurso era repetitivo mas eficaz :

- Hoje em Santo António das Areias... não perca um filme colorido... a cores .

O projectista e proprietário deste cinema itinerante, tinha um bigode à Clark Gable e o cabelo penteado para trás, vergado pelo peso da brilhantina . Creio que lhe chamavam Frontelas .

Nestas noites de cinema, em algumas ocasiões, os espectadores mais novos eram convidados a sair após a projecção do filme em cartaz, pois a segunda sessão estava destinada ao publico mais adulto, atendendo à sua natureza hardcore .

Como o fruto proibido é sempre o mais apetecido, numa dessas noites, nós os miúdos, conseguimos iludir a vigilância do controlador da bilheteira e fomos para os camarotes assistir a esta misteriosa segunda sessão .

Numa destas ocasiões a aparelhagem sonora deixou de funcionar . Alertado para a anomalia, o projectista, procedeu à reparação da avaria e perguntou :

- Já se ouve bem ?
- Não ! Respondeu a assistência .
- E agora ?
- Ainda não, mas deixa estar mesmo assim, que isto percebe-se à mesma. Retorquiu um espectador com voz arrastada, denotando o enfado de alguém a quem tinham interrompido o prazer de uma forma abrupta .


Um dia, o filme em cartaz começou uma hora mais cedo do que era habitual, mas o senhor Frontelas, fez questão de explicar as razões desta alteração :

- Queria avisar os senhores espectadores que hoje ... quando chegar a altura do Intervalo... não há intervalo ! É que eu ainda tenho que ir passar este filme a outro sitio .
Este e mais tarde o de Portimão, foram os meus "Cinema paraíso "... quase toda a gente tem o seu .

7 comentários:

Garraio disse...

Ai que saudades de madame cardin, son patapuf....e da gabriela, claro!

Felizardo Cartoon disse...

Também passaste pela telescola Garraio ? Provavelmente frequentaste a da Portagem ! Dizem os pedagogos que era um ensino deficitário, mas o que é certo é que eu aprendi muito .

Tive a sorte de ter grandes professores como por exemplo, o Sr. João de Deus .

Garraio disse...

Ai passei... passei!

Nós até temos muitos pormenores da infância em comum. Revi-me completamente no teu post. Os nosso velhotes eram ambos tasqueiros e merceeiros pelo que, como podes calcular a única diferença entre os Galegos e os Cabeçudos consistia, essencialmente, em eu que estava mais perto da Fontanheira.

Ah... a minha cabeça já não "chegava lá" en relação ao Patapuf.

Ainda hoje, sem praticar, me defendo bem em francês, graças, em grande parte, a esse enorme, enorme, professor de francês que foi o João de Deus Tavares. E quando fui para Portalegre, dava cartas a todos aqueles meninos do ciclo, coisa que agora é exactamente ao contrário. Hoje em dia os putos vão para Portalegre mais tarde e têm muito mais problemas de adaptação.

Felizardo Cartoon disse...

O professor João Tavares, juntamente com a Dona Fernanda, fazem parte daquele grupo de docentes que me marcaram positivamente para a vida . Eram exigentes ; competentes e dedicados, numa época pautada pelas grandes transformações revolucionárias, que o país atravessava .

Um dia, a emissão lectiva da Telescola, foi interrompida por parte do Chefe de estado da altura e de um grupo de militares, que comunicaram em directo que o país poderia estar à beira de uma guerra civil .

Para as nossas mentes juvenis e pouco informadas, a guerra anunciada, era sinónimo de aproximação de folga ou feriado, pelo que a notícia foi recebida com um entusiasmo contido na sala de aula, mas festejado cá fora :

Eh pá ! Se houver uma guerra civil agente amanhã se calhar, nã tem escola ! Boa !

Clarimundo Lança disse...

Como me revejo nestes "momentos de recordar é viver", que saudade!!!
Mas já agora uma ressalva, a Casa do Povo não está extinta, está viva e se recomenda.

Luísa Garraio disse...

Foi uma série muito bem conseguida...
Os pormenores das roupas, das decorações, das vivências da época...fizeram recordar muitas pessoas como se voltassem a viver aquele tempo...
Quanto à Telescola também por lá passei, e, também ao nível do Francês "demos" cartas quando chegámos à nova escola no 7º ano em Castelo de Vide...
E quanto ao Sr. Professor João de Deus só tive oportunidade de o conhecer como aluna na Escola Secundária de São Lourenço, estava eu no 10º ano e foi fantástico...foi o melhor professor de Português que tive...Até me custava perceber na altura como é que algumas colegas podiam ter negativa...se ele nos explicava tudo tão bem...
.. e a Gabriela, Cravo e Canela...foi um acontecimento único...lembro-me que muitas pessoas ainda não tinham televisão e vinham para a "tasca" ver a novela,assim como o festival da canção que ninguém perdia pitada... e os bancos compridos ficavam cheios de gente...outros tempos...
Parabéns pelo post...

Felizardo Cartoon disse...

Obrigado pelo comentário Luísa .

Não me esqueço que foste minha colega, enquanto estudante na Escola S. São Lourenço e enquanto docente na E. B. 2,3 José régio .

Queria aqui fazer uma ressalva : Peço desculpa quando disse que a Casa do Povo estava extinta ; na verdade o que queria dizer é que actualmente, já não tem os mesmos desígnios, que tinha no tempo a que se refere o post .

Isto não equivale a dizer, que actualmente não seja uma instituição meritória; viva e interventiva .

Longa vida às Instituições e colectividades de Marvão .