domingo, 20 de dezembro de 2009

Em águas de bacalhau



O presente “post”, ou artigo de opinião, como lhe queiram chamar, não reza sobre o fiel amigo dos portugueses, ou das mil e uma maneiras de o cozinhar ( o bacalhau, entenda-se ) . Pretende ser uma reflexão, sobre as águas pantanosas em que parece ter mergulhado a justiça portuguesa, há cerca de trinta anos a esta parte .

"A democracia, a pior forma de governo imaginável, à excepção de todas as outras que foram experimentadas", como dizia Winston Churchill, também tem lados lunares e sombrios, como parecem ser, os casos mais mediáticos, inerentes à justiça portuguesa, nas últimas três décadas .

Começando pelo caso, envolvendo a morte misteriosa e nebulosa de Sá Carneiro, muito se escreveu ; mais se especulou : acidente afirmaram uns; atentado, asseveraram outros; foram feitas peritagens, por especialistas conceituados e experimentados em casos similares .

Houve ou não explosão a bordo do bimotor ? Que engenho esteve na origem da mesma ? Quem o montou ? Quem ordenou e preparou o presumível atentado ?

No meio de tanto mediatismo e tanta verborreia, vieram alguns nomes a lume, mas ninguém parece saber verdadeiramente o que se passou . As palavras de ordem foram :

- Arquive-se !
- Inconclusivo !
- Não agitar ! Muito frágil ! Mantenha-se em águas pantanosas - de bacalhau !

Em casos mais recentes, como a queda da ponte Hintze Ribeiro, com as consequências trágicas sobejamente conhecidas, novamente a grande montanha pariu um rato ! Muitas horas de directos televisivos, a filmar os escombros da dita ponte, até ao ponto em que a notícia já devia ter deixado de o ser, de tanta persistência em mostrar os despojos da tragédia e das tentativas vãs, de resgatar os corpos das pobres vítimas, engolidas por um rio em cavalgada furiosa .

Com tanta avidez mórbida, chegaram ( pasme-se ) a organizar-se excursões para ir ver o que restava da centenária e caduca ponte.

Veio a costumeira verborreia, sob a forma de debates televisivos ; entrevistas a familiares das vítimas ; foram feitas especulações sobre o que teria estado por trás do acidente :

- Falta de manutenção ?
- Irresponsabilidade e negligência por parte das entidades, a quem cabe zelar e aferir relativamente à segurança deste tipo de estruturas ?
- Extracção abusiva de areias do leito do rio, pondo em causa a segurança dos pilares ?
- Negligência por parte do poder local ?

Um a um, aqueles a quem foi apontado o dedo, foram sacudindo a água do capote . A culpa morreu praticamente solteira, como é sabido . Em águas de bacalhau, como convém : - Arquive-se !

Não me vou alongar relativamente ao caso Casa Pia, a montanha que também está grávida de um ratinho, que tarda muito em nascer, pois o líquido amniótico está a transformar-se em águas de bacalhau, como convém e é da praxe.

Também aqui se instalou o habitual circo mediático , como é sabido, à mistura com reflexões sérias e fundamentadas que também as há e ainda bem :

Foram ouvidas as vítimas, constituíram-se arguidos; entraram juízes; saíram juízes . Foram presas preventivamente, figuras muito destacadas no panorama político e audiovisual .

Isto já foi de mais ! Era necessário mudar o código do processo penal e a prisão preventiva . Não fica bem a um país decente, ir prender figuras públicas, à casa da democracia.
A montanha há-de parir o seu ratinho, só não se sabe quando!

A sua fisionomia ( a do ratinho) deve ser muito parecida, com o outro roedor, que nasceu do processo apito dourado, outra montanha com altitude muito superior à encosta de Marvão .

O caso Madeleine McCann, é outro caso paradigmático e enigmático, da frágil investigação e do poder da justiça portuguesas . Abstenho-me aqui de delinear os seus contornos, pois são sobejamente conhecidos.

Muito foi dito; muito foi especulado , o caso correu o mundo; pronunciaram-se especialistas criminais; jornalistas ; foram defendidas duas teses : a de rapto por parte dos progenitores e amigos ; a de morte acidental e ocultação de cadáver, defendida pela equipa da judiciária que investigou o caso.

Neste processo intervieram quase todos os sectores da sociedade: da política; do desporto; da justiça; da religião ( até o próprio papa ) . Toda a gente teve opinião, alicerçada em fundamentos maioritariamente vagos . Foram escritos livros, por parte de especialistas criminais (como Gonçalo Amaral ) e jornalistas, cada um apresentando a sua tese, com edições esgotadas, como convém .

Depois de tantas opiniões e outras tantas teses, alguém sabe verdadeiramente o que terá acontecido ? Alguma vez se saberá ?
Far-se-á luz sobre o que se passou na aldeia turística, com esse nome ? O que temos é um vasto e sombrio manto de escuridão .

- Arquive-se ! Manter na horizontal ! Muito Frágil !

E no caso Joana ? Aqui houve condenações ! mas está tudo devidamente esclarecido ?

No meio disto tudo, Vale e Azevedo foi condenado : É a excepção que confirma a regra . A poesia de Camões sobre o desconcerto do mundo, assenta-lhe como uma luva :

“Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.”

A inspiração para este “ post”, emerge de um artigo de opinião poderoso, da autoria de Clara Ferreira Alves, do qual apresento aqui um excerto :

(…) “ Passado o prazo da intriga e do sensacionalismo, todos estes casos são arquivados nas gavetas das nossas consciências e condenados ao esquecimento.

Ninguém quer saber a verdade. Ou, pelo menos, tentar saber a verdade.
Nunca saberemos a verdade sobre o caso Casa Pia, nem saberemos quem eram as redes e os "senhores importantes" que abusaram, abusam e abusarão de crianças em Portugal, sejam rapazes ou raparigas, visto que os abusos sobre meninas ficaram sempre na sombra.


Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de protecções e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e reputações, de dinheiros e negociações que impede a escavação da verdade.

Este é o maior fracasso da democracia portuguesa “ (…) .

Um comentário:

Tiago Pereira disse...

Excelente apontamento!

Acrescentaria, como um dos maiores fracassos da Democracia em Portugal, o processo de Devolução Política Regional e Local – que foi sempre apontado como uma das maiores conquistas de Abril.

Pede-se uma dinâmica, e um modelo, diferente...