terça-feira, 17 de novembro de 2009

Miguel Teotónio Pereira, por mail

A festa, a castanha, o euro, o bom senso e a cidadania
(comentário ao post “O euro da discórdia")

A festa da castanha é um regabofe sem espírito, sem objecto, sem critérios, sem qualidade, sem ordenamento, sem percursos, sem mais-valias e sem respeito pelos residentes. A única “ideia” que a anima é a mesma (única) que “anima” todos os outros “eventos”: atafulhar, de qualquer maneira, Marvão de “turistas”, comprimi-los, espremê-los, às centenas, aos milhares, qualquer dia aos milhões, não se sabe porquê, e para quê; vale tudo - já se vendem cães, concerteza produtos do artesanato local. Tenho as maiores dúvidas que estes “eventos”, “organizados” sem pinta de inovação, de imaginação, sem nada que os diferencie de centenas de eventos similares plantados por esse país fora, sem uma ideia conducente àquilo que verdadeiramente importaria - realçar a singularidade de Marvão, a qual, aliás, também por via deste espírito festeiro, que confunde cultura com turismo, turismo com festas e festas com multidões engodadas e enganadas, rapidamente caminha para o suicídio -, resulte em benefício de Marvão; mas já não tenho dúvidas de que eles, esses “eventos”, contribuirão fortemente para a construção de uma imagem de um Marvão caótico, sem norte e também sem sul, normalizado, calibrado, e que cometeu a proeza de transformar um produto local num bilhete-postal dos anos 70.

Mas isto é um desabafo. Que terá o destino que costumam ter os desabafos: o esquecimento; porque, entre outras coisas, os entusiastas das “festas”, que o são porque são entusiastas dos “eventos” que tragam, nem que seja de joelhos e acorrentados, “gentes e gentes”, que o são porque são entusiastas dessa ideia de “turismo”, que o são porque são entusiastas da ideia-fetiche de que o “turismo” constitui a única hipótese de desenvolvimento das povoações raianas e despovoadas, não se dão ao trabalho de tentar perceber porque é que décadas dessa estratégia, com o partido A ou o B ao leme dessa nau desgovernada, nunca impediram o despovoamento e o empobrecimento persistentes, continuados, em aceleração; é como se dissessem: temos uma receita que aplicada diligentemente ao longo de 35 anos se revelou como a mais eficaz para empobrecer e despovoar o concelho; pois bem, o que vos propomos são mais 35 anos dessa estratégia!

Mas onde verdadeiramente eu queria chegar era ao “euro da discórdia”; porque a falta de senso tem limites. E começo pelo começo: não se trata, aqui, de saber se “eventos”, “festas”, e tutti quanti, deverão ou não ser cobrados; essa é uma conversa interessante, para a qual deverão carreados outros aspectos, como sejam as fontes diversas de financiamentos, a transparência na sua obtenção e distribuição, prioridades, parcerias, etc. Mas não é essa a questão. A questão é só a de saber se se pode, qualquer que seja o pretexto, cobrar a entrada num espaço, por natureza, público. E é claro que não pode. Juridicamente, moralmente e eticamente. A cobrança (coerciva, sim, que eu tenho olhos e ouvidos) do tal euro é absolutamente ilegal: aos olhos da lei e aos olhos do entendimento cívico de que espaços públicos não são privatizáveis; essa cobrança revela, entre outras malfeitorias, uma clara exorbitância das funções legalmente atribuídas às vereações, que não são donas do sítio, são gestoras, condicionadas pela lei e pelo bom senso, do sítio. A questão não é saber se se cobra a entrada para uma “festa”; a questão é saber se se pode cobrar a entrada numa povoação. E a analogia com outras “festas”, noutros locais, é no mínimo demagógica - porque, demagogicamente, omite o facto, relevante, de em Marvão, para se cobrar a entrada numa “festa”, cobrar-se a entrada na vila.

Uma última palavra para os residentes; eles já se habituaram a serem tratados como “gentes”, objecto das estratégias que outros em seu nome decretam, e não sujeitos do seu próprio destino; todas as humilhações estão já habituados a suportar; mas, desenganem-se: estão habituados, mas não conformados; eles trabalham, pagam impostos, deslocam-se, têm família, vão às compras, etc; não são “macaquinhos” presos na era medieval cuja única razão de vida parece ser a de constituírem uma “atracção” para os turistas, os de cá e os de fora. Parece haver quem lhes queira distribuir meia dúzia de bilhetinhos para entrar na sua própria terra, para aceder às suas casas, calcorrear as suas ruas, sem ter que dar justificação disso, ou pedir desculpas por atrapalhar o trânsito turístico. Deviam, penhorados, agradecer. Mas eu digo: guardem lá os bilhetinhos. Os moradores de Marvão não vendem a sua condição, e não deitarão borda fora, pelos menos não sem luta, a sua condição de cidadãos de corpo inteiro.

Miguel Teotónio Pereira
Novembro de 2009

3 comentários:

TiagoGaio disse...

Realmente os festeiros da nossa terra (e deste país!) são uns incompetentes!!! Mas o que vale é que ainda há por aí "alguém" com ideias de inovação e etc. e tal! Pena é que não passem de críticas (negativas, positivas e/ou construtivas), ideias e desabafos!! Resultado: à falta de melhores contributos, lá têm de ser os incompetentes a "fazer alguma coisa"...

Nuno Pires disse...

Independentemente do desabafo do Miguel, que pelo menos devemos respeitar, estranha-me o facto do tema da legalidade ou não legalidade de cobrar entradas á entrada da vila, sempre que este evento se realiza, provocar esta discussão.

Não seria já tempo da Câmara Municipal se pronunciar sobre este assunto mediante a apresentação de parecer jurídico, que explicasse a todos nós a credibilidade desta medida.

Talvez fosse possível efectuar um corte na verba dos 10.000,00€ para a associação comercial, e utilizar na consulta deste tema junto de um gabinete jurídico.

Apesar de tudo há que felicitar a todas as pessoas que mais um ano contribuíram para a realização deste evento.

Obrigado.

Nuno Pires

Gilberto Gil disse...

Boa Miguel! Relativamente á governação dos últimos 35 anos não posso falar, pois também não tenho bases para o fazer. Confesso que me supera pela idade, e pela interiorização pouco reflectida de assuntos que são anteriores a preocupações de cidadania, entre outros. Mas no que toca ao “euro da tristeza” e à forma como os moradores são tratados, só posso dizer um coisa! “Na mosca!”