O forno de pão comunitário dos Cabeçudos , ladeado pelos lageados onde se colocavam os tabuleiros do pão a fermentar (à esquerda ) e o banco onde as pessoas se sentavam ( à direita ).
Resiste ainda à passagem do tempo, o forno de pão que servia a povoação de Cabeçudos . Nascido do esforço e da vontade dos moradores locais, era de grande utilidade para a pequena comunidade, desde as primeiras décadas do século xx, que o utilizava numa altura em que ainda não se processava a distribuição diária do pão, como ocorre hoje em dia .
Ergueu-se do solo rochoso (à força do trabalho árduo não remunerado dos homens da aldeia), sem projecto, num terreno na altura baldio ; sempre foi de todos e nunca se lhe conheceu um dono . Funcionava como uma embrionária cooperativa comunitária, muitos anos antes da revolução de Abril, a partir da qual proliferaram, unidades produtivas de maior dimensão, mas com o mesmo objectivo : criar metodologias de produção, mais ou menos organizadas, que funcionassem em prol da comunidade, mas servindo também o individuo .
Cada família fazia uma “massa”, em dias previamente acordados e sujeitos ao consenso da população . O produto final, o pão daí resultante, durava em média para uma semana e meia para cada agregado familiar. Quando por alguma razão, este bem (já na altura de primeira necessidade) faltava, era usual pedir-se emprestado ou ser trocado por outros produtos, junto daqueles cuja produção tinha sido excedentária .
Havia também famílias que possuindo um forno próprio, tinham mais autonomia e maior margem de manobra, neste processo . Ainda existem na aldeia dois fornos privados com as mesmas características daquele que servia a comunidade . Todos se encontram ainda em condições de laborar e têm sido utilizados nos últimos anos, essencialmente em épocas festivas como a Páscoa, para produção dos chamados “bolos fintos” ou folares .
Hoje em dia, como no passado, os processos de manufactura, são semelhantes : depois de amassado, o pão ou o bolo vai a cozer no forno previamente aquecido através da combustão de arbustos rasteiros, ou de galhos resultantes da limpeza das árvores, sendo utilizada mais comummente a giesta, que existe em abundância na região durante todo o ano .
De salientar que o Concelho de Marvão era nesta altura, praticamente auto-suficiente no que respeita à produção cerealífera .
Devido à natureza do relevo de Marvão: extremamente acidentado e à grande compartimentação dos terrenos em pequenas propriedades com solos de características mistas : aráveis, mas com áreas onde o granito aflora aqui e ali de uma forma aleatória, o Concelho, nunca teve uma agricultura de cariz latifundiário, (exceptuando talvez aquela que se praticava na herdade do Pereiro) .
Com efeito, sempre vigoraram as pequenas explorações familiares ou minifundiárias . Não obstante, qualquer “courela” horta ou curral eram semeados . Muitos terrenos, atendendo à especificidade do solo, eram polvilhados por pedras soltas que era preciso reunir em pequenos amontoados, tornando a terra arável, permitido desta forma uma sementeira mais abrangente .
Ainda hoje é possível apreciar estas pedras metodicamente empilhadas, muitas vezes a fazer a divisão entre as áreas de cultivo e procurando nivelar parcelas de terreno em socalcos que permitissem a rega, sem arrastamento de terras. Na localidade do Porto da Espada, este “lego”, que se espalha por montes e vales é no meu entender particularmente belo e digno de se apreciar .
Este tipo de divisão da propriedade, tão característico, apresenta algumas semelhanças com a paisagem da cultura da vinha, na ilha do Pico, nos Açores e que foi classificada como Património Mundial da Humanidade .
No processo que conduzia à manufactura do pão, os moleiros recolhiam, os cereais (trigo e centeio), junto dos produtores e procediam à sua moagem nos moinhos estrategicamente localizados ao longo do rio Sever a partir da povoação da Portagem . Posteriormente eram entregues já transformados em farinha, aos respectivos donos, em sacos de pano grosso a que se dava o nome de talegos .
O preço a pagar pelo produtor ao moleiro, não era mais do que uma porção do produto em causa, a que se dava o nome de "maquia " . Na verdade nenhum agricultor gostava de levar uma grande maquia , entenda-se .
Estas pequenas unidades de produção, os moinhos, funcionavam um pouco à semelhança dos lagares de azeite e movimentavam um número significativo de trabalhadores do Concelho .
Nas propriedades de maior dimensão, onde eram servidas ou confeccionadas refeições, cuja base era o pão, como por exemplo a açorda ou as migas, podiam-se encontrar dois tipos de “pratos” : um à base de centeio: “as sopas centeias” destinadas aos ganhões e outro à base de trigo : “as sopas trigas “, destinadas aos encarregados ; ” manageiros”e aos patrões .
O pão de centeio era assim o” parente pobre “da culinária da região, não obstante o seu valor nutritivo ser semelhante ao do pão de trigo .
Às vezes a esperteza dos intervenientes, contornava esta descriminação : quando o superior hierárquico comia junto com os trabalhadores, havia alguém que sub-repticiamente, distraía o primeiro, tendo outro assalariado a incumbência de misturar as sopas trigas com as sopas centeias , repondo assim igualdade e justiça na distribuição da paparoca .
Não posso atestar a veracidade destes procedimentos, pois não os vivi, foram-me transmitidos por um ancião dos Cabeçudos, o ti Zé da Vila, ( já falecido ) que com os seus quase noventa anos, tinha certezas mais firmes daquilo que se passara há 70 anos atrás, do que aquilo que comera ao almoço, nos dias em que repetidamente contava esta e outras histórias .
As informações contidas neste post, emergem de testemunhos de protagonistas reais, que sentiram na pele as vicissitudes destes tempos difíceis , de privações e de miséria e fazem parte do seu conhecimento empírico e das suas vivências.
Se há aqui informações erróneas, estas fazem parte do imaginário popular . Decidi dar conta destes episódios, que nos remetem a um passado não muito distante, da vida da comunidade marvanense, com o objectivo de elucidar os mais jovens para o facto dos bens de consumo, nem sempre terem chegado ao prato das pessoas com a mesma facilidade com que chegam hoje em dia .
Numa altura em que a Educação para o Consumo, faz parte das indicações programáticas do Ministério da Educação, para as Áreas Curriculares Não Disciplinares de Área de Projecto e Formação Cívica, talvez não seja despropositado fazer aqui referência ao tipo de consumo que se praticava no passado, em última instância, para estabelecer uma analogia, com o consumismo desenfreado dos nossos dias .
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