Memórias da Rádio Ninho de Águias (Capítulo V)
(Dedicado a Manuel Magro Machado)
Após instalação na Câmara Velha, a Ninho de Águias, ingressou num período de certa estabilidade. Exceptuando quando, no início em que o emissor estava colocado no Castelo, e quando se encerrava a emissão, às tantas da noite, lá tínhamos que nos deslocar aos tropeções e apalpadelas, para desligar o dito cujo.
Chegaram a existir programas para todos os gostos com diversos colaboradores do concelho e não só. Recordo aqui hoje, o denominado “ busílis da questão”, da autoria do José Boto, que um dia teve como convidado para uma entrevista, o saudoso Dr. Machado.
Depois de relatados diversos episódios, vivenciados durante a sua vida de médico, o Dr. Machado lá resolve contar um que mais o desarranjou, na sua vasta experiência clínica, de mais de meio século no concelho de Marvão, e, que agora aqui vos deixo:
“… num dia de Natal, já ao fim da tarde, quase noite, aí pelos anos cinquenta do século passado, batera-lhe à porta o “Manel Antonho”, filho do ti Zé C…, que morava ali para o pé dos Barretos, comunicando que o pai estava muito mal, e que vinha pedir ao doutor para que este o “fosse ver” sem demora a sua casa, de onde o dito não saía há mais de um mês.
Verbalizava o doutor que, apesar de naqueles tempos ser impensável um médico recusar ou sequer cogitar, não assistir um doente, que daquela vez, e, num dia daqueles, esteve mesmo a quebrar o seu juramento hipócratico, e dizer ao pobre "Manel Antonho", que só poderia cumprir os seus deveres na próxima manhã. Só que, o atarantado rapaz nem sequer deixou terminar os seus malevolentes pensamentos e, dizendo que o pai estava mesmo muito mal, quase o empurrava para cima da mula que havia pedido ao vizinho, para servir de transporte ao senhor doutor, que outro remédio não teve, que agarrar à pressa a sua maleta, e pôr-se atrás do rapaz a caminho dos Barretos.
Chegados a casa do enfermo, uma árida habitação de campo, deparou-se o doutor com um cenário de três mulheres cochichando, sentadas a uma mesa num recanto da cozinha. E, sentado num “mocho”, a um canto da chaminé junto do lume, com um cajado entre as pernas e lenço atado à cabeça, o ti Zé C….
Após ter dado as boas noites, a que só as mulheres responderam, o doutor Machado, puxando dum banco, sentou-se amigavelmente em frente do acabrunhado paciente, dando inicio a uma estratégica anamenese, já que as coisas, em termos comunicacionais, pareciam complicadas, a julgar pelo semblante do combalido.
Às perguntas gerais se lhe doía o peito, a cabeça, a barriga ou as costas, respondeu o enfermo sempre com o monossílabo, Não, começando a deixar preocupado o clínico. Passou depois a questões mais específicas como se tinha tosse, vómitos ou soltura, mas a resposta foi sempre a mesma, um seco, Não, que deixava o doutor cada vez mais duvidoso e com alguma suspeição, levando-o a mudar de estratégia, e questionar o Zé C…, sobre qual seria o seu problema. E daí surgiu a pergunta:
- Mas ó Zé, afinal, o que é que se passa contigo, para me chamarem neste dia e a estas horas?
Tendo o doutor Machado ouvido a resposta mais surpreendente de toda a sua carreira clínica:
- Ó doutor…, não sei o que se passa, não me dói nada, só que há mais de um mês, que não me pede o corpo trabalho!
A esta resposta, rematou o nosso afável Dr. Machado, não descurando, a ética ou deontologia:
- Hum…, hum…, pois, pois…
(Dedicado a Manuel Magro Machado)
Após instalação na Câmara Velha, a Ninho de Águias, ingressou num período de certa estabilidade. Exceptuando quando, no início em que o emissor estava colocado no Castelo, e quando se encerrava a emissão, às tantas da noite, lá tínhamos que nos deslocar aos tropeções e apalpadelas, para desligar o dito cujo.
Chegaram a existir programas para todos os gostos com diversos colaboradores do concelho e não só. Recordo aqui hoje, o denominado “ busílis da questão”, da autoria do José Boto, que um dia teve como convidado para uma entrevista, o saudoso Dr. Machado.
Depois de relatados diversos episódios, vivenciados durante a sua vida de médico, o Dr. Machado lá resolve contar um que mais o desarranjou, na sua vasta experiência clínica, de mais de meio século no concelho de Marvão, e, que agora aqui vos deixo:
“… num dia de Natal, já ao fim da tarde, quase noite, aí pelos anos cinquenta do século passado, batera-lhe à porta o “Manel Antonho”, filho do ti Zé C…, que morava ali para o pé dos Barretos, comunicando que o pai estava muito mal, e que vinha pedir ao doutor para que este o “fosse ver” sem demora a sua casa, de onde o dito não saía há mais de um mês.
Verbalizava o doutor que, apesar de naqueles tempos ser impensável um médico recusar ou sequer cogitar, não assistir um doente, que daquela vez, e, num dia daqueles, esteve mesmo a quebrar o seu juramento hipócratico, e dizer ao pobre "Manel Antonho", que só poderia cumprir os seus deveres na próxima manhã. Só que, o atarantado rapaz nem sequer deixou terminar os seus malevolentes pensamentos e, dizendo que o pai estava mesmo muito mal, quase o empurrava para cima da mula que havia pedido ao vizinho, para servir de transporte ao senhor doutor, que outro remédio não teve, que agarrar à pressa a sua maleta, e pôr-se atrás do rapaz a caminho dos Barretos.
Chegados a casa do enfermo, uma árida habitação de campo, deparou-se o doutor com um cenário de três mulheres cochichando, sentadas a uma mesa num recanto da cozinha. E, sentado num “mocho”, a um canto da chaminé junto do lume, com um cajado entre as pernas e lenço atado à cabeça, o ti Zé C….
Após ter dado as boas noites, a que só as mulheres responderam, o doutor Machado, puxando dum banco, sentou-se amigavelmente em frente do acabrunhado paciente, dando inicio a uma estratégica anamenese, já que as coisas, em termos comunicacionais, pareciam complicadas, a julgar pelo semblante do combalido.
Às perguntas gerais se lhe doía o peito, a cabeça, a barriga ou as costas, respondeu o enfermo sempre com o monossílabo, Não, começando a deixar preocupado o clínico. Passou depois a questões mais específicas como se tinha tosse, vómitos ou soltura, mas a resposta foi sempre a mesma, um seco, Não, que deixava o doutor cada vez mais duvidoso e com alguma suspeição, levando-o a mudar de estratégia, e questionar o Zé C…, sobre qual seria o seu problema. E daí surgiu a pergunta:
- Mas ó Zé, afinal, o que é que se passa contigo, para me chamarem neste dia e a estas horas?
Tendo o doutor Machado ouvido a resposta mais surpreendente de toda a sua carreira clínica:
- Ó doutor…, não sei o que se passa, não me dói nada, só que há mais de um mês, que não me pede o corpo trabalho!
A esta resposta, rematou o nosso afável Dr. Machado, não descurando, a ética ou deontologia:
- Hum…, hum…, pois, pois…
Mas no seu espírito, girava, como um pião zumbidor, pronto a desintegrar-se, o seguinte pensamento: “- Ó Zé, se não fosse cá por coisas…, mesmo agora te estendia no lombo o cajado que tens aí nas mãos!”.
E dispensando a mula que lhe havia servido de montada na ida, pé atrás de pé, lá se pôs a caminho de Santo António das Areias.
(Retalhos da vida de um médico: Ary dos Santos)
Serras, veredas, atalhos,
Estradas e fragas de vento,
Onde se encontram retalhos
De vidas em sofrimento
Retalhos fundos nos rostos,
Mãos duras e retalhadas
Pelo suor do desgosto,
Retalha as caras fechadas
O caminho que seguiste,
Entre gente pobre e rude,
Muitas vezes tu abriste
Uma rosa de saúde
Cada história é um retalho
Cortado no coração
De um homem que no trabalho
Reparte a vida e o pão
As vidas que defendeste,
E o pão que repartiste,
São lágrimas que tu bebeste
Dos olhos de um povo triste
E depois de tanto mundo,
Retalhado de verdade,
Também tu chegaste ao fundo
Da doença da cidade
Da que não vem na sebenta,
Daquela que não se ensina,
Da pobreza que afugenta
Os barões da medicina
Tu sabes quanto fizeste,
A miséria não segura,
Nem mesmo quando lhe deste
A receita da ternura
E dispensando a mula que lhe havia servido de montada na ida, pé atrás de pé, lá se pôs a caminho de Santo António das Areias.
(Retalhos da vida de um médico: Ary dos Santos)
Serras, veredas, atalhos,
Estradas e fragas de vento,
Onde se encontram retalhos
De vidas em sofrimento
Retalhos fundos nos rostos,
Mãos duras e retalhadas
Pelo suor do desgosto,
Retalha as caras fechadas
O caminho que seguiste,
Entre gente pobre e rude,
Muitas vezes tu abriste
Uma rosa de saúde
Cada história é um retalho
Cortado no coração
De um homem que no trabalho
Reparte a vida e o pão
As vidas que defendeste,
E o pão que repartiste,
São lágrimas que tu bebeste
Dos olhos de um povo triste
E depois de tanto mundo,
Retalhado de verdade,
Também tu chegaste ao fundo
Da doença da cidade
Da que não vem na sebenta,
Daquela que não se ensina,
Da pobreza que afugenta
Os barões da medicina
Tu sabes quanto fizeste,
A miséria não segura,
Nem mesmo quando lhe deste
A receita da ternura
(continua...)
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